Sala de Estar

Sala com piano, sofás e lareira para passar o tempo quando há convidados.

Teçá soube no momento exato em que Stefan demonstrou algum apreço e sensibilidade pela pobre empregada que desmaiara de exaustão ou insolação, que ele havia ganhado Ilca completamente. Embora o pai fosse um brutamontes sem coração, Ilca ainda era humana o bastante para apreciar o gesto. Ela sabia que se não fosse por sua mãe, talvez as duas semanas que passara trancada pudessem ter sido um ano. Já ela, apenas assentiu de novo, com a curva dos lábios erguidos casualmente.

Estava satisfeita. Ele parecia gentil, atencioso, e muito educado. Era mais do que ela podia esperar. E se atrevia a dizer que o coração batia um pouco mais rápido e desajeitado no peito. Mas por fora, não demonstrou nada. Era uma máscara perfeita e emoldurada.

Teçá se acomodou em uma poltrona, mas manteve a postura ereta. Sabia que era indelicado reparar demais, por isso varreu todo o cômodo ao entrar, e agora podia fitar os anfitriões, o seu... noivo.

- Espero que eles tenham o descanso devido após a ocasião. Seria muito desagradável se aproveitar de toda a sua boa vontade - ela disse, mesmo sabendo que era um comentário inoportuno. Estava curiosa, com os olhos focados em Stefan. Não deixava escapar nada.

- Pela assertividade de suas palavras, devo pensar que se preocupar com a felicidade alheia faz parte de sua rotina, senhor? - Teçá indagou, pendendo a cabeça à sua esquerda apenas o suficiente para não parecer grosseiro, mas interessado.

A ansiedade por conhecê-lo melhor parecia prestes a consumir o seu peito. Era tanta, que ela nem mesmo se deu ao trabalho de medir o tom de voz, de manter a postura impecável. Foi a mãe que muito discretamente lhe deu um beliscão no braço quando a senhora Rothstein mudou de assunto.

Maldição.

Ela não podia falar sobre assuntos importantes tão abertamente.

Teçá sorriu, e desviou os olhos para o piso revestido em carpete desenhado e fino.

- Ah, as estradas estavam uma maravilha! - Lendt Lengyel respondeu, feliz com a mudança de assunto. Ele estava feliz, muito muito muito feliz com aquela união.

Teçá fez o que sabia fazer de melhor enquanto a conversa continuava entre os patronos das famílias: sorriu e não disse uma palavra. Infelizmente, toda a sua pose de bom comportamento poderia ir por água abaixo porque ela não conseguiu impedir a si mesma de fitar Stefan de cinco em cinco segundos. A essa altura, já sabia bem qual era a cor dos seus olhos azuis. Uma diferente, hipnotizante. Gostosa de olhar. Era bom que gostasse, afinal de contas passaria o resto da vida encarando aquelas íris bonitas. Havia tanto que gostaria de perguntar, de ver.

Era a primeira vez de Teçá naquela cidade. Ela parecia ter se esquecido até mesmo do cansaço da dita árdua viagem para chegar até ali.

Quando os pais estavam muito animados com a conversa que tinham, ela se aproveitou para se colocar de pé, deixando a xícara em cima da bandeja decorada que haviam posto na mesa de centro, e muito sorrateiramente se colocou de pé.

Teçá usava um vestido longo de veludo verde musgo que faziam contraste com os seus olhos, e os cabelos haviam sido presos em um coque perfeito e alto. Ela era muito bonita, apesar de baixinha. Infelizmente não se via assim.

- É um quadro muito... - ela começou, e torceu minimamente o nariz tentando encontrar uma palavra que fosse sincera mas não rude. Era um quadro horrível que Stefan estava olhando - Distinto.

- Ouvi dizer que o senhor é agraciado com dois irmãos mais novos, certo? - ela precisou fazer certo esforço para manter a língua dentro da boca e não emendar mais três, quatro, até cinco perguntas sobre como eles eram. Sobre como todos eram. Sobre como Stefan realmente era.

Foi impossível conter, porém, um sorrisinho satisfeito quando ele continuou o assunto com tanta facilidade. Teçá precisava ser sincera consigo mesma. Nem a aparência, nem a idade. Ela estava mesmo preocupada é sobre o quanto os dois poderiam conversar durante a vida.

Para o seu completo azar e tristeza absoluta, a sogra se interpôs. É claro que interviria. Algo em sua postura deixava muito óbvio.

- É um belo quadro, senhor - ela apenas concordou, e teve o bom senso de se afastar de Stefan.

O tempo pareceu passar ainda mais devagar depois disso. O assento se tornou desconfortável, a postura causou dores em suas costas. Foi Ilca quem tomou a iniciativa de entregar a xícara a um criado, e se colocar de pé. A mulher era muito parecida com Teçá, exceto pela coloração extremamente loira do cabelo também preso em um coque.

- Eu adoraria conhecer a sua esplendorosa casa antes de nos alojarmos para o casamento, Lady Rothstein - a matricarda dos Lengyel pediu, e ao mesmo tempo fez um aceno sutil com a cabeça para que Teçá se levantasse - Poderia nos acompanhar?

Era uma boa ideia. Andar faria bem aos ânimos e ao seu quadril, pelos Deuses. Teçá sequer havia pensado na probabilidade de uma caminhada pelo casarão sair pela culatra, não. Estava mais entretida em olhar de canto de olho os homens se afastando. Aquela era uma ideia muito estúpida. Por que se dividir? Por que os homens acreditavam que as mulheres não poderiam falar sobre as mesmas coisas que eles?

Era sobre isso que ela pensava quando alguém pegou o seu braço. Teçá arfou, não mais do que isso. Outra garota, uma com a sua idade. Uma que tinha a mesma vivacidade que ela nos olhos.

-  Oh, olá - foi tudo o que ela disse. Obrigada por me salvar.

Ilca empertigou os ombros a princípio, mas assentiu com a cabeça de maneira firme. Ela não sorria. Ela nunca sorria.

- Vou deixá-las então, e farei companhia a matriarca da casa. Teçá, querida... - Ilca hesitou só por um instante. Não podia dizer a filha em público para que não fosse uma desajeitada - Tome cuidado.

- É claro, mãe.

A garota não deu mais muito tempo para que Ilca falasse. Ela praticamente puxou a mulher passarinho pelo braço até ser interrompida por um rapaz. Só entao ela se deu conta. Meio em choque, piscando muito os cílios grossos, ela ouviu o diálogo até ele se afastar. Somente quando as duas voltaram a andar, Teçá se virou para fita-lá mais de perto.

- Nossa, muito, muito obrigada então. Eu sou Teçá, mas acho que você já sabe. Bem, ninguém me disse que Stefan tinha uma irmã. Por que ninguém me disse? Eu ficaria muito mais tranquila.  

Era relativamente difícil acompanhar o ritmo das palavras de Rosalie. Teçá não achava o fato nem um pouquinho desagradável, pelo contrário, era muito muito muito agradável ter alguém para conversar sem precisar sorrir forçadamente o tempo inteiro, manter a postura cada milésimo de segundo.

Quando ela riu, subindo as escadas de mãos dadas com a cunhada, foi de verdade.

- Sim e não. Bem, eu seria completamente maluca se dissesse não ter curiosidade sobre Stefan especificamente, mas também quero saber tudo sobre... tudo - Teçá puxou a barra do vestido com a mão esquerda que estava livre, enquanto os olhos passeavam pelos corredores - Por favor, não me ache uma intrometida.

- Parece... - ela fez uma pausa curta, franzindo de leve as sobrancelhas numa expressão contraditória, mas acabou desistindo do que quer que fosse comentar, e apenas sorriu - Uma ótima ideia. Acredito que terei muitas oportunidades para conversar com ela.

Teçá era uma observadora inenarrável. Logo, era difícil as vezes não criar preconceitos sobre as pessoas. Sua primeira impressão sobre a sogra não fora das mais agradáveis, mas ela sabia que não podia tirar conclusões tão precipitadas. Também seria deselegante comentar a pequena aversão a cara de esnobe de uma mãe para a filha.

- Oh... - ela interrompeu qualquer linha de pensamento quando Rosalie parou no alto da escada.

Aquela garota... simplesmente perfeita. Teçá ergueu o canto dos lábios de orelha a orelha.

- Eu acho uma ótima ideia! Eu posso começar? - apenas depois de Rosalie assentir e voltar a andar, Teçá a acompanhou, e sentiu as bochechas corarem um pouco antes de perguntar: - Stefan é um homem gentil?

Teçá sentiu o coração saltar no peito, e precisou conter a vontade de perguntar o motivo. Por que ela fora a escolhida? Certamente aquela era uma aliança de interesse familiar absoluto, mas se haviam tantas outras possibilidades, por quê?

- Sim, sou filha única - ela respondeu prontamente, acenando com a cabeça para uma criada que descia as escadas em que elas subiam - O meu pai é muito amargurado por não ter tido um menino. Minha vez. O que vocês fazem por aqui para se divertir?

Ser amante da arte não era um eufemismo. Teçá Lengyel precisava de arte para sobreviver, e crescer com o mínimo de sanidade mental possível. Ela sabia apreciar cada nota, casa sinfonia, e cada complemento que veio com a música simultaneamente. Christian estava sendo modesto quando disse que tocava um pouco, ele era um ótimo pianista. Com a melodia suave, Teçá sentiu o coração se acalmar dentro do peito, voltar para o eixo. Todo o mundo de possibilidades que estava se abrindo com aquele casamento, deveria deixá-la feliz. Ela precisava ser feliz. E sentada na sala, ouvindo o piano, ela realmente acreditou que poderia.

Em determinado momento, quando encontrou uma brecha e conseguiu se levantar sem chamar muita atenção, ela se aproximou de Stefan. Sabia que provavelmente estava sendo idiota porque teriam muito tempo para conversar depois do casamento, mas a ânsia de conhecê-lo naquele instante, falou muito mais alto.

Ela sorriu, delicada e gentil, próxima o bastante para que ele pudesse ver o seu rosto com clareza.

- É uma música incrível, você não acha?

- Acho que o importante mesmo é saber apreciar a obra, afinal de contas - ela respondeu, tendo plena ciência de que enfatizara a palavra "acho". Queria que Stefan soubesse que ela era capaz de pensar por si própria, ter a próprias opiniões, tomar as próprias decisões. Porque suportou durante 25 anos de sua vida, ser tratada com alguém incapaz de raciocinar. Não suportaria por mais um ano, ter que fingir.

Ela notou como os olhos de Stefam vagaram, e franziu as sobrancelhas em uma resposta silenciosa. Seria... ciumes? Dela e de Christian? Por Deus, a ideia pareceu completamente absurda e sem cabimento. Teçá Lengyel era uma pessoa leal. E mostraria isso ao noivo, extinguiria as suas inseguranças, com o tempo. Se ele permitisse. Algo lhe dizia que ele permitiria.

- Gosto de pintar paisagens - ela sorriu, dando mais um passo sorrateiro para perto dele, fitando profundamente os seus olhos. Deixando que ele visse que ela estava disposta não somente a conhecê-lo. Mas a amá-lo - Mas devo admitir que as vezes, também gosto de pintar as pessoas. Seria um prazer poder fazer um quadro com seu rosto.

Ela sorriu mais uma vez, mas a música chegava ao seu fim. E com isso, Teçá não pôde falar com Stefan por mais muito tempo.